
Exposição . 18 dez – 15 jan 2022
Performance de Marta Ramos . 18 dez às 17h
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Poço
Foi para lugares de rio que a Maria Oliveira e a Marta Ramos desceram da alta montanha: para o Rio Paiva, o Rio Vouga, o Rio Teixeira e o Rio Mel, para os seus leitos, as suas margens e os seus poços.
As duas artistas não se conheciam antes deste nosso convite para, primeiro, se encontrarem na residência artística da Escola de Macieira, a antiga escola da última aldeia quem sobe a alta Serra de São Macário, e depois, na exposição na Neblina, no Porto. Aqui, como nos dois momentos anteriores do projeto – o Galho e a Terra – o Poço propõe um encontro entre um/a artista que instala uma exposição e um/a artista que realiza uma performance, no mesmo espaço: a Neblina. O projeto enquanto proposta nossa, não só parte dos nossos lugares – a Escola de Macieira em São Pedro do Sul e a Neblina, o nosso estúdio no Porto – como tem por pressuposto a nossa criação da imagem gráfica e do desenho expositivo, numa indagação exploratória sobre criar e apresentar. Propomo-nos em diálogo com a/os artistas, e a partir das suas obras concretas, passar da interpretação e do diálogo, para o desenho de um contexto cénico. Ou dito de outra forma, as fotografias que a Maria nos enviou, levaram-nos a pensar numa estrutura em madeira que no espaço se encarrega de tudo. Sabíamos que não poderiam ser simplesmente mais umas fotografias na parede. Que o impacto do lugar em que foram realizadas – da alta montanha ao baixo rio, pedia uma experiência no lugar da exposição, que trouxesse aos corpos da/os visitantes, algo que à falta de melhor, chamaríamos de inquietação territorial, enlevamento meditativo, calmante surpresa, e outras sensações complementares. Ao longo deste Ciclo Era já ali mas já era outra coisa, sabíamos que a Neblina no Porto, tinha que de certa forma ser também Macieira. Que aqui o espaço expositivo não poderia ser apenas isso, que não poderia ser um lugar anódino, adormecido, equivalente a outros, e logo, traidor.
Chama-se a uma piscina fluvial natural, um poço. Na cultura fluvial o poço é lugar de mergulho e de descoberta, de convívios, partilhas e também sustos. É que o nome logo invoca o outro poço, mais utilitário e mais assustador – o da água (a particular e a comunitária), mas também o poço dos acidentes e dos suicídios.
Ao contrário, as piscinas fluviais naturais – os poços, são sempre paisagem surpreendente e bela, e naturalmente atraem os corpos do nosso verão. Fundamentais para estes momentos, os mapas permitem desvios e descobertas. É que encontrar um poço por meio de um acesso difícil, muitas vezes de caminhada íngreme e vegetação a rasgar a pele, promete maior solidão. E o uso de mapas leva ao desenho de novos, durante a estadia a Marta Ramos desenha um novo mapa, mais sensível e mais volátil (o sapo e o cavalo ainda estarão lá?).
Descer do alto das montanhas para os rios, e documentar essa experiência com diferentes câmaras fotográficas, com o desenho, com a criação de mapas, com a criação de gestos, com a memória. Sensações térmicas, fruta, verão, verdes sobrepostos, pedras e arrepio, atravessam este Poço. Percursos partilhados e palavras, que ecoam pela voz da Marta pelo espaço da Neblina, agora interceptado por uma estrutura em madeira. As ripas de casquinha que a compõem atravessam a Neblina, em encontros de viés e esquinas surpreendentes, como um desenho espacializado, vazado e tridimensional. As fotografias da Maria Oliveira descem da madeira em finos suportes próprios à sua dimensão. No centro do espaço expositivo, a estrutura é simultaneamente o lugar para as fotografias e a mesa onde acontecerá, onde aconteceu, a performance. Podemos rodear a estrutura e entrar dentro (do poço), e lembramo-nos de que poderia tratar-se de um projeto de construção-embarcação (fluvial, marítima, aérea…). Está atracada: promete a viagem e é ponto de chegada.
Mas atentemos nas fotografias da Maria Oliveira. Na mais icónica (propiu sensu) das imagens da exposição, um coração verdadeiro e morto jaz num alvo pano pousado no chão, numa idílica paisagem rural. Um coração encena-se. Está em contraponto, que não em confronto, com a dimensão mais documental das outras fotografias. Há uma ficção na representação deste coração que atira a nossa imaginação para o processo de criação da imagem. A fotografia foi realizada em Macieira? É uma imagem criada depois da experiência da residência? Simples evocação? Ou será um talismã?
O fabricar desta imagem, de algo que essencialmente interior nos é revelado com exterioridade, leva-nos a repensar as outras fotografias expostas. As outras imagens que a Maria fez durante a residência artística, e que também se poderão constituir como documentos do lugar, surgem-nos agora sobre outro prisma. Uma mão segura (e sente o peso de) uma pedra, a água do rio escorre por uma coxa (a coxa sente a água), uma hera segura-se a uma parede (e nela faz um desenho). E ainda, um feixe de luz atravessa o encontro da água e da vegetação (e atravessa a lente, encadeando a imagem), alfaiates pousam à superfície da água (a água aguenta), uma pedra de rio segura uma romã aberta (e esta não se afoga).
Ao momento desta escrita, a performance da Marta Ramos ainda não aconteceu, mas parte já de um livro-coleção-arquivo que a Marta foi fazendo. Objeto que se desdobra por folhas de materiais e tons diferentes, papel de jornal, papel pautado, acetato…, com desenhos, fotografias, mapas desenhados à mão, folhas em branco, repetições. As palavras ser-nos-ão ditas pela Marta. Não estão impressas como as palavras de outros livros, são voz que se des-lo-ca-rá no espaço. Foi tendo em conta as ideias para a performance que a Marta nos foi contando ao longo do tempo de maturação do projeto, que desenhámos e construímos uma mesa e um banco, reconhecíveis enquanto tais ainda que diferenciados no seu desenho – uma vez que a mesa é parte da estrutura, pertencendo-lhe de raiz. Imaginámos o corpo da Marta como um ativador do espaço, reverberação simultaneamente calma e vital, ecoando vivências veraneantes por terras da Beira Alta, testemunha das curvas do território, das linhas da água, de pensamentos focados, e mensageiro de alusões animistas. E se eu fosse uma montanha – pergunta a pedra?[1]
Este conhecimento impulsionado pelo projeto Era já ali e já era outra coisa, que é desenvolvido localmente, a partir da pequena aldeia de Macieira, e baseado em pesquisas tão diversas quanta/os a/os artistas que as iniciaram, é um conhecimento eminentemente artístico. Desenvolvido a partir da experiência do lugar, acresce ao que se sabia, e antecede o que se saberá, numa sobreposição de acontecimentos e coisas. E o desejo de arte que lhe está na origem é como um desejo de poder um pouco acontecer no mundo.
O Ciclo fecha-se com um Poço. E é um poço que sendo profundo, tem fundo.
Intimidade – diz-nos a Maria; Contemplação – repete a Marta.
[1] Frase que integra o texto da performance de Marta Ramos.
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Fotos da Exposição | Photos of the Exhibition








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Fotos da Performance e inauguração | Photos of the Performance and the Opening
“E se eu fosse uma montanha?” performance de Marta Ramos no dia 18 de dezembro na Neblina no Porto.
“E se eu fosse uma montanha?” (And if I was a mountain?) by Marta Ramos was a performance presented on the 18th December 2021 at Neblina in Porto.









Fotos/Photos@Daniel Moreira e Rita Castro Neves
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Era já ali e já era outra coisa tem o apoio do Programa Garantir Cultura da República Portuguesa.
It was just there and it was already something else is supported by the Portuguese State Program Garantir Cultura.
